domingo, 3 de julho de 2011

a revolução cansa

Veio parar-me às mãos um livro de edição brasileira, cuja existência desconhecia, da autoria de um personagem contemporâneo da Revolução Francesa, Henri Béraud, amigo de infância em Arras e de toda a breve vida de Maximilien Robespierre, de quem curiosamente os historiadores não costumam fazer grandes referências. Vizinho de Maximilien em Arras (traça, aliás, um perfil diferente do habitual e muito interessante do seu pai e do episódio do seu abandono do lar familiar e dos quatro filhos, após a morte da esposa), colega de escola em menino, estiveram separados durante doze anos, por Robespierre ter sido convidado para estudar no famoso Colégio Louis-le-Grand, graças aos seus méritos de aluno disciplinado e sabedor. Viriam a reencontrar-se mais tarde, já jovens, e mantiveram desde aí uma amizade respeitosa, quase apolítica, o que fez com que Béraud se mantivesse sempre na estima do seu amigo e importante protagonista da Revolução. Algum tempo após ter concluído o curso de Direito e de ter iniciado uma desinteressante carreira de advogado em Arras, por vicissitudes da sua vida familiar, Béraud migra para Paris, onde acabaria por se fixar, exercendo a profissão de juíz de paz. O livro tem o título, em português, «Meu amigo Robespierre» e é um testemunho interessante da vida do «primeiro cidadão» da República Jacobina, escrito num tom de intimidade de um amigo que quer salvaguardar a memória do que viu, e não tanto desculpar ou isentar o protagonista biografado das suas responsabilidades históricas, boas ou más aos seus olhos. O livro foi concluído e prefaciado pelo seu autor em 29 de Janeiro de 1825.

O tom da obra é necessariamente intimista e frequentemente atravessado por reflexões do autor sobre o seu amigo, que não deixa de julgar com severidade, ainda que usando quase sempre da indulgência que é própria da amizade. Béraud faz um traço do carácter e da personalidade de Robespierre, que vai ao encontro do que dele sabemos: afectado, ardiloso, trabalhador, hesitante, estratega, legalista, melindroso, crente, fanaticamente crente na transcendência e no papel da sua pessoa para preservar a religiosidade do povo francês, racionalista, leitor ávido e acrítico de Rousseau, receoso, quase esquizofrénico político pelo receio das conspirações contra si, reactivo, implacável, incorruptível, influenciável, vaidoso e snob, doente, e – pasme-se! –, ao invés da opinião comum, interiormente muito fraco, se tivermos em conta as palavras de sua irmã Charlotte: «Esse homem tão enérgico não tem, na intimidade, força nenhuma».

Este perfil de Maximilien humaniza-o um pouco mais do que aquilo a que nos habituámos, e que, por exemplo, o filme de Wajda retrata (Danton – O processo da Revolução), num papel extraordinário de um extraordinário actor ucraniano Wojciech Pszoniak, que faz um Robespierre pesado, introspectivo, impiedoso, felino e fatal. Pelo contrário, Béraud, que garante que o seu amigo «era bom», embora admitindo que «o patriotismo o afastava da piedade», reparte as culpas dos períodos mais negros da Revolução por vários personagens, não regateando, contudo, as necessárias responsabilidades ao seu amigo, mas rejeitando a diabolização com que alguma História posterior o tratou. Assim, sobre a morte dos Girondinos, Béraud afirma que «Robespierre não desejava a sua morte, e que só a contragosto consentiu nela». E lembra, ao encontro de muitos outros autores que referem, por exemplo, o modo imprudente como os Girondinos hostilizaram Danton na Convenção, quando este lhes tentou dar a mão, que «na luta em que pereceram, os Girondinos foram, muitas vezes, os agressores». Na queda de Luís XVI e no fim da monarquia, Béraud afasta, embora com visível pena, todas as responsabilidades do seu amigo («Sou obrigado a dizer que Robespierre não teve nenhum papel no dia 10 de Agosto»). Imputa, com visível exagero, as temíveis leis do Prairial, ou a leitura e execução que se fez delas, a «um mestre do crime, chamado Fouché», e defende a tese de que a diabolização do Incorruptível é feita pelos seus inimigos com a intenção de o fazerem perder e de o destituirem do poder, coincidindo, assim, com as palavras do próprio Robespierre proferidas na Convenção a 8 de Thermidor, na véspera da sua queda: «Não há talvez um único indivíduo preso, um único cidadão tiranizado ao qual não houvessem dito a meu respeito: “Eis o autor da tua desgraça: serias feliz e livre se ele não existisse”». Já sobre a morte de Danton e Desmoulins, Béraud não isenta Robespierre das responsabilidades principais, embora diga também – o que não deixa de ser exacto – que ele deu «ouvidos às intrigas» que circulavam sobre Danton, que, de resto, tinha inúmeros inimigos entre os jacobinos (Billaud-Varenne e Saint-Just, sobretudo), e merecia o desprezo de muita gente pelo seu carácter venal e corruptível, que nem os seus mais amáveis biógrafos conseguem disfarçar.

O livro ganha particular interesse na sua parte final, que relata os últimos momentos do Incorruptível e os factos principais do golpe thermidoriano. Desses momentos ressalta a natureza fatalista do biografado, que quase não reage ao golpe, já sem força anímica, escudando-se num falso legalismo, em que nem ele mesmo acreditava, e em palavras – em muitas palavras -, em vez das necessárias acções. Uma vez vencido (calado, isto é, impedido de discursar) na Convenção, Robespierre deixa-se aprisionar e levar-se quase infantilmente ao cadafalso, como se fosse a sua última glória a confirmação do que profetizara a respeito de si mesmo. Um ponto importante, que curiosamente nem sempre é tido em conta pelos historiadores, é o relato dos acontecimentos no interior da sala Égalité, no Hotel de Ville, onde estava refugiado com os seus fiéis, Saint-Just, o irmão Augustin, Couthon, Lebas, Hanriot, Payan, entre outros, e o próprio Béraud, que o acompanhou como amigo, menos do que por razões políticas. Destes factos é muito interessante o relato que faz sobre a origem do tiro que Robespierre recebeu no seu queixo, no momento em que a sala foi invadida pelos soldados da Convenção, e que praticamente o matou. Sobre este famoso tiro existem ainda estranhamente duas teses, já que Béraud, presente no momento dos factos, confirma a primeira: tentativa de suicídio ou um tiro disparado por um soldado convencional, o sargento Merda. Seja como for, Robespirre não mais recuperaria do ferimento, tendo sido guilhotinado no dia seguinte.

Uns dias corridos sobre estes factos, Collot d’Herbois, um terrorrista do Comité de Salvação Pública, transformado em thermidoriano, escrevia estas palavras. «Se Robespierre, em vez de ter ficado entretido no Hotel de Ville, tivesse marchado à cabeça dos oito ou dez mil homens que enchiam a Place de Gréve, e juntamente com Couthon tivessem levantado o povo com os seus discursos, estaríamos perdidos.». Mas, como relata Béraud, Robespierre preferiu desistir. A revolução cansa, poderia ter sido o seu epitáfio.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

maçonaria e revolução



Um dos assuntos mais controversos da Revolução Francesa, provavelmente o mais difícil de todos, tem a ver com o papel que a Maçonaria nela desempenhou. As opiniões vão, neste assunto, do zero ao infinito, e ora é atribuída à Ordem Maçónica um papel central e decisivo, fosse na preparação de uma conspiração e uma conjura para fazer eclodir o furor revolucionário contra a Família Real, fosse na transmissão dos valores que a inspiraram, ora lhe atribuindo um estatuto de algoz, responsável pelas mortes de Setembro e do Terror, ora fazendo dela uma vítima entre as muitas que sucumbiram sob os golpes incontáveis da guilhotina. Não me apetece dizer, como é comum neste género de polémicas históricas, que a verdade se encontrará algures no permeio das duas extremidades. Sou – confesso-o de imediato – mais propenso à tese de que a Maçonaria foi devorada por uma revolução que apenas ajudou a preparar pela influência do pensamento dominante da época, pensamento, de resto, que não era nem uniforme, nem originariamente seu, nem, tão-pouco, partilhado unanimemente entre os seus membros – os Irmãos -, e para a qual somente contribuiu pela acção individual de alguns maçons, mas nunca em função de qualquer plano pré-estabelecido. Em contrapartida, não hesito em afirmar que muita da Maçonaria que hoje conhecemos – concretamente a que está sob a órbita do Grande Oriente de França – foi visceralmente influenciada pelos valores saídos da revolução, entre eles o anti-clericalismo, a laicidade, o republicanismo e o igualitarismo. Por outras palavras, não foi a Maçonaria que influenciou a Revolução, mas a Revolução que influenciou a Maçonaria.

Existem dificuldades metodológicas intransponíveis na convicção de que a Maçonaria foi determinante numa conspiração revolucionária na França de 1789. A primeira é óbvia: não houve uma mas, pelo menos, quatro Revoluções Francesas, entre 89 e 99, e cada uma das que se ia seguindo devorou apressada e violentamente a anterior. A primeira dessas revoluções foi aristocrática e constitucional, por um lado partidária do Duque de Órleans (Grão-Mestre do Grande Oriente de França, bem sei e já lá iremos...), por outro simplesmente defensora de um sistema de monarquia constitucional com Luís XVI, segundo o modelo inglês, ou, preservando a monarquia, seguindo os passos do constitucionalismo liberal norte-americano. Nesse período pontificam homens como La Fayette, Mirebeau, Barnave, entre outros. Alguns eram maçons, como terá sido o caso do primeiro e do segundo, outros, como Barnave, sobre quem recaiu também essa suspeita, estão hoje, como eles, ilibados pela maioria dos historiadores, visto o seu nome não constar de nenhum quadro das lojas onde foi referenciado (sobre Barnave vd. Albert Soboul, La Franc-Maçonnerie et la Rèvolution Française, Annales Historiques de la Rèvolution Française, 1969, nº 3). Em todo o caso, na Assembleia Constituinte saída do Jogo da Péla, calcula-se que perto de 200 deputados seriam maçons, num total de cerca de 1177. Iso não significa, todavia, que esses deputados estivessem irmanados de um qualquer plano revolucionário-maçónico, de que tivessem sido incumbidos por um qualquer directório secreto. Os tempos eram de excessivo fervor para tamanha contenção.

A segunda revolução – a Revolução Girondina – foi burguesa, defensora dos direitos de propriedade, monárquica e constitucionalista, por convicção, e parcialmente regicida, por necessidade, ainda que só a Convenção tenha decidido sobre o destino de Luís XVI. Dos deputados da Assembleia Legislativa deste tempo, calcula-se que mais de 200 fossem maçons, num total de 745. Muitos dos chefes girondinos eram igualmente maçons, como Brissot, segundo se crê, membro da loja Les Neuf Soeurs, também frequentada por Danton e Desmoulins, cuja acção foi, todavia, determinante em levá-lo, a Brissot e ao directório girondino, ao cadafalso... A terceira revolução, jacobina, teve também protagonistas maçons, entre eles, segundo se acredita, os seus chefes principais, Georges-Jacques Danton e Maximilien Robespierre. Ainda que este último não fosse devoto obediente da Ordem, frequentara em Arras, na juventude, a loja Hesdin, enquanto Danton e outros, como Desmoulins e Hérbert, sejam tidos como obreiros da célebre loja de Paris Les Neuf Soeurs. Isso não logrou, todavia, que a célebre «harmonia maçónica» reinasse entre eles, ao ponto dos três últimos – Hérbert, Desmoulins e Danton, terem visto as suas vidas findarem na guilhotina, por acção do primeiro. E o mesmo sucedeu no ciclo seguinte da Revolução Thermidoriana, na qual padeceram, por sua vez, os maçons Robespierre e Couthon, entre outros também, às mãos de maçons, alguns deles que, tal como eles, pertenciam até ao Comité de Salvação Publica, como, segundo parece, Collot d’Herbois e o próprio Barras.

Não obstante a polémica sobre a filiação maçónica de muitos destes homens (há quem afirme que não existem provas seguras da ligação à Maçonaria de nomes como o próprio Mirebeau e até mesmo de Danton), a verdade é que essa é uma questão desnecessária para se poder avaliar a importância da Ordem Maçónica nos momentos determinantes da Revolução. Na verdade, a tese favorável mais radical inclina-se para afirmar que a Revolução foi obra da Maçonaria e que se desenrolou consoante os seus planos. Ora, isso é desmentido pela evidência dos factos e pela lógica das coisas. Primeiro, não houve «uma» revolução, mas uma sequência de golpes e contra-golpes que levaram à sucessão e destituição de diferentes grupos políticos no poder, assim como à instauração de regimes políticos também eles desiguais nos valores estruturantes. Por conseguinte, nada disto era planificável e foi andando ao sabor dos acontecimentos e dos protagonismos individuais e de pequenos grupos dirigentes, e a factos muitas vezes comprovadamente acidentais. Segundo, porque se alguma coisa caracteriza os dez anos da Revolução foi o facto dela ter, como dizia premonitoriamente Vergniaud, «como Saturno, devorado os seus filhos», ou, utilizando linguagem maçónica, devorado muitos dos seus irmãos. Por outras palavras, não se vê possível um complot maçónico (ou outro qualquer) que traçasse um plano tão caótico quanto o foi a sucessão de acontecimentos da Revolução Francesa, nem se imagina que os homens que eventualmente o tivessem gizado semelhante tragédia quisessem ser suas vítimas pela sua própria morte e pela morte de muitos dos seus amigos. Não é, pois, razoável imaginar que os acontecimentos da Revolução Francesa fossem susceptíveis de um plano pré-concebido, menos ainda que tivesse sido imaginada e executada por quem quer que fosse, menos ainda pelas suas sucessivas vítimas.

Ainda que a maior parte dos historiadores do tempo e da primeira parte do século XVIII (entre eles Michelet e Blanc) quase a não refiram elhe não dêm relevo, a tese da influência maçónica na Revolução é práticamente contemporãnea dos primeiros acontecimentos revolucionários, e é devida ao Abade Lefranc, um dos mais de 180 padres assassinados nos massacres de Setembro de 92, que, nesse mesmo ano, publicou um livro extenso intitulado Conjuration contre la religion catholique et les souverains, dont le projet conçut en France doit s’exécuter dans l’Univers entier, no qual defendeu a tese de que fora a Maçonaria a autora da Revolução. Lefranc foi seguido na literatura anti-maçónica e anti-revolucionária pelo célebre Abade Augusto Barruel, que, em 1798, publicou o seu não menos célebre livro Mémoires pour servir à la histoire du jacobinisme. Estas obras ajudaram a criar a ideia da existência de uma conspiração vinda de fora da França contra a França e as monarquias europeias, que originou a Revolução, da qual seria responsável a Franco-Maçonaria francesa, enquanto mero tentáculo espúrio da «sinistra» Ordem dos Iluminados da Baviera, os célebres Illuminati que ainda hoje enchem páginas imensas da literatura «histórica» fantasiosa, como são o caso dos folhetins de David Brown (sobre as teorias históricas conspirativas, entre elas as que envolvem a Revolução Francesa e a Maçonaria, os Illuminati e os Templários, vd. a interessante obra de Nicholas Hagger, The Secret History of the West, 2005).

É evidente que, quanto mais não fosse, o facto destas obras contemporâneas da Revolução a envolverem com a Maçonaria, obriga-nos a não ser ingénuos e a perceber que a Maçonaria não terá sido um elemento absolutamente neutro no curso dos acontecimentos, embora isso não faça dela, como acima já adiantámos, um agente particularmente activo da Revolução. Vejamos, então, se estes dois aspectos são ou não conciliáveis entre si.

Comecemos pela constatação de uma evidência: a Maçonaria tinha, muito antes dos primeiros acontecimentos da Revolução, uma expressão forte na sociedade francesa, principalmente nos centros urbanos, como Paris, onde a Revolução verdadeiramente eclodiu. As primeiras lojas em solo francês (não necessariamente «francesas», como veremos já em seguida) surgiram logo após 1717 e á fundação, nesse ano ocorrida, da Grande Loja de Londres, a casa-mãe da chamada moderna Maçonaria Especulativa ou Filosófica, em contrapartida à Maçonaria Operativa dos artesãos e construtores de templos e catedrais vinda do final da Idade Média e do período do Renascimento. Em 1735 eram inúmeras as lojas de origem inglesa (e também escocesa) sediadas em França, ao ponto de, contrariando as intenções hegemónicas dos ingleses, ter sido proclamada a necessidade de nomeação de um Grão-Mestre próprio para França. A 24 de Junho de 1738, reunidos numa assembleia geral de maçons, foi instituído o cargo de Grãp-Mestre Geral e Perpétuo dos Maçons do Reino de França, cargo confiado ao Duque d’Antin, e foi criada a Grande Loja de França (a denominação formal é, contudo, apenas de 1765). Em 1743, em virtude da morte do primeiro Grão-Mestre, é nomeado para o cargo o Irmão Conde de Clermont, um Bourbon e aristocrata, primo de Luís XVI, ao qual se sucede, em 1772, o Irmão Duque de Chartes, mais tarde, Duque d’Orléans, no cargo agora designado de Sereníssimo Grão-Mestre da Ordem de França, Ordem essa designada, desde esse ano, por Grande Oriente de França. O novo Grão-Mestre, que atravessou os acontecimentos de 89, ficou célebre, mais tarde, com o epíteto de Philippe-Egalité...

Antes de entrarmos na suposta «conspiração orléanista» a que Philippe deu azo, segundo a qual uma conjura maçónica-revolucionária teria por fim pôr no trono esse primo de Luís XVI (o que, mantendo-se a tese conspirativa, desvia, contudo, o seu foco da conspiração jacobina e republicana), uma nota somente para dizer que, antes do começo da Revolução e até ao surto da emigração aristocrática, a Maçonaria francesa era sobretudo composta pela aristocracia citadina e pela alta burguesia, à qual se juntava um número expressivo de padres católicos (sobre a presença de padres católicos na Maçonaria do tempo da Revolução, vd. o interessante trabalho de doutoramento de José A. Ferrer Benimeli, Arquivos Secretos do Vaticano e a Maçonaria: História de uma Condenação Pontifícia, 1976). A Maçonaria francesa não era, por conseguinte e pela natureza de quem a compunha, um antro de conspiradores que quisessem destruir a nobreza francesa, o clero e, muito menos ainda, implantar a República. Sobre os sentimentos republicanos dos primeiros revolucionarios franceses, vale a pena recordar que Desmoulins disse, pouco antes de morrer, que em 1789, na Tomada da Bastilha, os republicanos não seriam, em França, mais do que meia-dúzia (o próprio Robespierre só se confessa republicano pouco antes da queda do Rei e, mesmo assim, com grandes cautelas e hesitações). Ou seja, a deriva republicana de 92, 93 e 94 não estava manifestamente no espírito dos revolucionários de 89, menos ainda dos maçons dessa altura. A Maçonaria era, assim, nesses tempos primevos da Revolução, um ponto de convergência entre a nobreza e a alta burguesia e o clero, na qual se debatiam, sem dúvida, as «novas ideias», sobretudo as que eram veículadas pelos Enciclopedistas, mas não propriamente onde se preparasse uma conspiração com a finalidade de retirar do vértice do poder político e social as pessoas e as ordens sociais que efectivamente a compunham. Alguns exemplos para melhor ilustrar o que aqui fica dito: a Loja Les Amis Réunis, fundada em 1786, era composta, no seu período aúreo, por 68 obreiros, dos quais 3 padres, 22 burgueses e os restantes aristocratas; a La Nouvelle Union contava com 70 membros, dos quais 19 nobres, 8 padres e os demais pertencentes à burguesia próspera de Paris. Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas há um facto inquestionável: dos sans-culottes, a verdadeira «vanguarda revolucionária», não encontramos o mais ténue vestígio nos quadros dos obreiros das lojas. Em contrapartida, muitos dos membros proeminentes da Maçonaria francesa emigram ainda antes de 92 (alguns, por sinal membros proeminente, logo em 89), outros são presos ou mortos (veja-se o caso da célebre Princesa Laballe, amiga privilegiada de Maria Antonieta – também ela tida, por alguns historiadores, como membro da maçonaria feminina -, que foi morta nos massacres de Setembro, do mesmo modo que o padre Lefranc, e que chegou a ser Venerável da loja «Le Contrat Social»), sendo que a maioria das lojas abate colunas em 91 e em 92, após o 10 de Agosto, o que denota o seu claro afastamento dos caminhos republicanos e regicidas seguidos pela Revolução.

Tratemos, então agora, do caso particular de Philippe-Egalité, Grão-Mestre do Grande Oriente de França, indiscutível pretendente ao trono em substituição do seu primo Luís XVI, e a cujas influências se imputam muitos dos primeiros acontecimentos revolucionários. Parece hoje inquestionável que, apoiado por homens como Mirebeau e Choderlos de Laclos e, até - há quem o sustente - pelo próprio Danton, o Duque de Orléans conspirou contra o seu primo e gastou nessa actuação uma verdadeira fortuna, ele que era o segundo maior proprietário do reino, imediatamente a seguir a Luis XVI. Estas eram, pelo menos, as suspeitas de Luís XVI e, sobretudo, de Maria Antonieta, que votava a Philipe uma desconsideração muito particular, embora hoje se acredite que a sua participação no fomento do fervor revolucionário não teve a dimensão, pelo menos nas ruas de Paris, que alguma historiografia lhe concedeu. É certo que ele foi, como já vimos, Grão-Mestre do GOF, mas parece também que a sua proximidade à Maçonaria era mais honorífica e formal do que material. O verdadeiro administrador-geral do Grande Oriente foi, por esses tempos e até 1789, quando emigrou para Inglaterra na sequência dos primeiros acontecimentos revolucionários (e, nesse mesmo ano, para Lisboa, onde veio a morrer), o émigré Sigismond de Montemorency-Luxembourg, adversário declarado do Duque d´Orléans e fiel partidário da Monarquia (na melhor das hipóteses, Constitucional...), que queria ver protagonizada por Luís XVI e não pelo seu duvidoso primo. Deste modo, poderemos concluir que os acontecimentos que levam até 1789 ultrapassam qualquer conspiração da Maçonaria, ou de uma loja maçônica, que pudesse ter sido concebida em favor das pretensões de Orléans. Esta, a ter existido, muito rapidamente perdeu fôlego e foi ultrapassada, pouco tempo depois de 14 de Julho, pela radicalização popular e sans-coulotte do processo revolucionário. Após a queda do Rei e o fim da Monarquia a 10 de Agosto de 92, o pobre Duque tornou-se uma figura verdadeiramente patética e transformou-se no absurdo Citoyen Égalité, ele que ainda no começo desse ano tentara uma reconciliação com Luís XVI, apenas frustrada pela intransigência, mais do que justificada, diga-se, do Rei. Caído em desgraça, foi preso a 6 de Abril de 1793, ainda pelo regime do Primeiro Terror. Em estado de desespero, o pobre homem tentou mesmo desmarcar-se do seu passado maçônico (o que demonstra bem que essa não era uma qualidade apreciada pela nova República), demitiu-se do cargo de Grão-Mestre a 5 de Janeiro de 93, e publicou uma deplorável carta de contrição no Jornal de Paris, a 22 de Fevereiro seguinte, pedindo desculpa por ter sido maçon nestes termos: «Não conhecendo a maneira pela qual se compõe o Grande Oriente e não devendo haver, na minha opinião, nenhum mistério e nenhuma assembléia secreta numa República, sobretudo no princípio do seu estabelecimento, já não quero envolver-me em coisa nenhuma do Grande Oriente, nem saber das assembleias de franco-maçons». O acto foi-lhe de nenhuma utilidade, já que a lâmina da guilhotina lhe trataria competentemente do pescoço a 6 de Novembro de 93.

Parecendo, assim, evidente, que a Maçonaria, enquanto organização, não participou num «plano» para realizar a Revolução Francesa, plano esse por si mesmo impossível de gizar, fica então pendente a possibilidade de ela ter sido, através das lojas, o veículo de divulgação das idéias revolucionárias, sobretudo do pensamento dos Philosophes. Se parece pacífico que Diderot, Rousseau e o próprio Condorcet (que teve um triste fim, como é sabido, nas prisões do Terror) foram maçons, e se as lojas terão servido para, por um lado, promover a aproximação social e até política da nobreza dominante e da burguesia ascendente, e, por outro lado, para que estas pessoas partilhassem, entre si, de uma considerável liberdade de expressão e de opinião no espaço maçónico, que lhes era socialmente muito mais reduzida antes de 89, a verdade é que muitos dos elementos tipológicos da idiossincrasia filosófica de alguma Maçonaria posterior, concretamente da francesa, não a influenciavam nesse tempo e foram adquiridos muito depois. Referimo-nos, muito concretamente, ao anti-clericalismo, ao republicanismo e até ao princípio da laicidade. Antes e imediatamente após o começo da Revolução, a Maçonaria francesa era monárquica, parte dela aceitava os valores estruturantes do Ancien Régime, embora a maioria fosse adepta do reformismo constitucional. Esta era a influência vinda de Inglaterra, mas, sobretudo, dos Estados Unidos, país inequivocamente fundado por maçons, que Lafayette trouxera e fizera plasmar no texto da primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em 2 de Outubro de 1789 pela Assembleia Nacional. E que valores são esses? São os da liberdade e da igualdade civil, do primado da lei, da propriedade, da necessidade da contenção do poder soberano, da Constituição, da separação de poderes, etc.. São ideias que, em bom rigor, provêm, em parte, do Iluminismo inglês e escocês, mais até do que do Iluminismo francês patente nas obras de Rousseau. Não por acaso, a defesa da ditadura de Robespierre – um fanático admirador de Jean-Jacques, haveria de fazer-se para além, ou mesmo contra estes valores e contra esta Declaração e a Constituição de 91, que é sua legítima filha. Por outro lado, os valores que, mais tarde, marcariam parte da Maçonaria de França, entre eles o anti-clericalismo e o jacobinismo republicano, não podem atribuir-se ao pensamento maçônico do tempo da Revolução. Voltaire, o grande filósofo anti-clerical, seria feito maçon a 7 de Março de 1778, menos de três meses antes de morrer, a 30 de Maio desse ano. Voltaire, anti-clerical e anti-católico toda a sua vida, terá querido morrer católico (segundo Carlos Valverde, que exibiu o número de Abril de 1778 da revista francesa Correspondence Littéraire Philosophique et Critique, onde está publicada uma declaração do filósofo anunciando a sua conversão e a sua confissão a um padre católico, o Padre M. Gautier), pelo que não terá procurado a Maçonaria para a tentar influenciar com um anti-clericalismo que já não possuía, como alguns autores defendem, obviamente sem qualquer sustentação. Não é igualmente correcto atribuir-se a Constituição Civil do Clero a qualquer influência maçônica, já que essa intromissão da política na Igreja de França se pode inscrever mais nos conflitos seculares entre os Estados católicos e a Igreja, de que a História de França é rica (vejam-se, por exemplo, os Papados de Avinhão e os conluios que a política internacional estabeleceu em torno do Grande Cisma), como foi rica a História de Portugal, com as inúmeras excomunhões de reis portugueses, com o Beneplácito Régio de Pedro I, para além das muitas Concórdias e Concordatas celebradas entre as autoridades políticas do Estado Português e a Igreja Católica, com o fim de pôr termo ou de evitar conflitos recíprocos. Para além disto, o ateísmo que marca hoje alguma Maçonaria Francesa era claramente rejeitada pelos maçons de então, até mesmo por Maximillien Robespierre, que tinha profundas convicções religiosas, e que atacou os herbertistas também pelo facto deles se declararem ateus (é célebre a fúria de Robespierre pela colocação de alguns cemitérios da frase «A morte é o sono eterno» devida a jacobinos partidários de Hérbert).

A questão da República também não era pertinente na Maçonaria pré e imediatamente pós-revolucionária. A Maçonaria, quando a República se implantou, praticamente desapareceu e, antes dela, era praticamente defensora da Monarquia Constitucional e avessa a uma via revolucionária que rompesse com os princípios originários da primeira Revolução. No Verão de 93 existiam em Paris 4 ou 5 lojas. No ano seguinte, o principal sustentáculo do que restara do Grande Oriente e que era seu administrador-geral, o banqueiro Tassin, foi condenado à morte e executado em Maio. O Grande Oriente desapareceu e ressuscitou, coxo e débil, com Napoleão, que fez dele um instrumento do seu poder pessoal, até 1815. Os valores republicanos que hoje o GOF reivindica, e que não fazem necessariamente parte do patrimônio de outras Obediências francesas, como as actuais Grande Loja Nacional Francesa e Grande Loja de França, acabaram por ser incorporados mais tarde, juntamente com o anti-clericalismo, e seriam pano de fundo da maioria dos movimentos e das revoluções republicanas européias e sul-americanas, do final do século XIX e do começo do seguinte. Destas e de outras questões dogmáticas, como a crença em Deus como o Grande Arquitecto do Universo, viria a ocorrer o cisma maçônico de 1877 entre a chamada Maçonaria Regular, de influência inglesa e sob a tutela da UGLE (United Grand Lodge of England) e a chamada Maçonaria Irregular, ou tradicional, nos países onde, como em Portugal, tem profundas raízes históricas, e que orbita em torno da tradição francesa do GOF. Esse cisma, que continua, hoje ainda, a dividir as Maçonarias do mundo inteiro, foi sendo gerado com o tempo, e de modo algum se pode dizer que, nos seus elementos dogmáticos, estivesse sequer latente durante a Revolução. Diga-se, assim, que neste como noutros temas que hoje a marcam, a Maçonaria francesa é mais filha do que mãe da Revolução iniciada em 1789 e declarada como finda em 1799, por Napoleão Bonaparte.

quinta-feira, 3 de março de 2011

arquivos da revolução


Um site para quem tenha interesse em aprofundar a Revolução Francesa.

quarta-feira, 2 de março de 2011

a morte de um rei

Luís XVI é uma dessas personagens raras que compõem o drama da História nos momentos em que os deuses decidem que ela deve inflectir o seu percurso. Luís Bourbon, feito Rei de França, em 1774, com apenas 20 anos de idade, descendia de uma linhagem que conhecera dois antecessores fortes, Luís XV, seu avô, e Luís XIV, o Rei Sol e seu trisavô, símbolos do Absolutismo que assolava, por essa altura, as monarquias europeias.

Há muito tempo em crise, a França que Luís herdou debatia-se com a bancarrota iminente, a escassez de alimentos, a tensão social resultante da manutenção de privilégios antiquados, uma centralização administrativa e política asfixiante, e, pior do que tudo, com as ideias dos philosophes, onde sobrelevavam Rousseau e Voltaire, que agitavam a opinião pública e punham em causa toda a autoridade.

Luís Capeto (como os revolucionários insistam em chamar-lhe, logo após a sua queda) era um homem pouco ou nada fadado para o governo. Perdia horas nos seu hobby favorito, a carpintaria, caçava, comia fartamente e não era sequer um galanteador, no que desmerecia dos seus ascendentes e tornava insatisfeita a princesa austríaca com quem se casara com a tenra idade de 16 anos. Não querendo governar, Luís XVI rompia a tradição absolutista do último século. E os homens a quem entregou um reino falido pelos gastos sumptuários e incontrolados da corte, não conseguiram conter a tempo o devorismo das elites, tão-pouco com a Revolução a invadir-lhes já os palácios. Na verdade, nem Turgot, vítima das suas políticas reformistas, nem Necker, que generosamente contribuiu para alargar e aprofundar o já de si imenso buraco das finanças do reino, nem Callone conseguiram resultados que pacificassem o país. Ou seja, já nada podia salvar a França da tragédia da Revolução.

Todavia, este carpinteiro feito rei mostrou que era capaz de compreender os sinais da História, o que poucos franceses conseguiram, então, intuir. Aboliu a tortura, concedeu direitos civis plenos aos protestantes, que no reinado anterior tinham sido severamente perseguidos, participou na Guerra da Independência americana (o que, sobretudo, lhe interessava para desequilibrar a rival Inglaterra), não só com dinheiro, mas com homens da sua confiança (dizem que La Fayette terá sido um deles...). Mas, mais significativo do que tudo isto, convocou os Estados Gerias, que não reuniam há quase 200 anos. Este foi, como é sabido, o ponto a partir do qual se desenrolou a Revolução.

As personagens históricas das grandes transições são sempre dramáticas, ambíguas e raramente recebem o elogio dos povos e o reconhecimento da História. Confesso-me, porém, um fascinado admirador destas pessoas que chocam violentamente com a História, e onde encontramos homens como Marcello Caetano, Mikhail Gorbatchev, Chamberlain, Danton. O seu drama resulta de já não pertencerem a um passado que verdadeiramente não chegaram nunca a compreender, e não fazerem parte do futuro que são incapazes de intuir e, menos ainda, condicionar. Todos os esforços que fazem são infrutíferos e todas as tentativas inglórias. Como não conseguem resolver as questões de fundo - como se elas tivessem solução humana - desagradam a todos e não satisfazem ninguém. Não dominam minimamente os acontecimentos, porque eles já escaparam à simples vontade dos homens, mas, ao invés, não têm como lhes escapar. São meras pontes de passagem entre o que está para trás e o que está inevitavelmente a chegar.

Se a História não se apieda destes homens, vale a pena, a nós, homens como eles, considerá-los com humanidade. E se a morte a todos nos torna iguais, a maneira como a enfrentamos torna-nos frequentemente diferentes. A esse propósito, e ao contrário de quase todos os revolucionários que enfrentaram, mais tarde, a guilhotina, o comportamento de Luís XVI foi, perante a sua morte, digno das mais extraordinárias novelas em que se exaltam os heróis. Dela existem três relatos fidedignos: o de Jean-Baptiste Cléry, seu empregado de quarto, o do Abade Edgeworth de Firmont, o seu confessor, que o acompanhou ao cadafalso, e, mais significativa do que estes dois depoimentos, porque insusceptível de qualquer reserva ou dúvida de autenticidade, foi a do infelizmente célebre Charles-Henri Sanson, o carrasco. Este último escreveu as seguintes palavras, um mês exacto após a execução do Rei: “Para ser fiel à verdade, ele aguentou tudo com um sangue-frio e uma força que nos espantaram. Estou convencido que tirou essa força dos princípios da sua religião, porque não poderia haver alguém com mais fé do que ele”. Tinha razão. Na véspera da sua morte, Luís XVI confidenciou ao seu confessor: “Como estou contente por ter conseguido agir de acordo com os meus princípios. Sem eles, onde estaria eu neste momento?”

terça-feira, 1 de março de 2011

sobre vetos

A 11 de Novembro de 1791, em pleno furor revolucionário, Luís XVI, já muito condicionado na sua acção e uma pálida sombra do que poderia ter sido um rei absoluto, vetou um decreto da Assembleia Legislativa Francesa que atacava os emigrés (os aristocratas e demais pessoal político do Ancien Régime fugido para o estrangeiro e suspeito de conspirar conta a Revolução), que determinava o seguinte: «Se não regressarem a 1 de Janeiro de 1792, serão culpados de conjuração, perseguidos, punidos com a morte». Alegou, o Rei, na sua fundamentação, que os artigos do decreto lhe pareciam «não poder compadecer-se com os usos da nação e os princípios duma constituição livre». Tinha razão, como é evidente. A 29 de Novembro do mesmo ano, Luís XVI recebeu novo diploma legislativo da Assembleia, que ostensivamente chocava com a sua consciência moral e religiosa. Tratava-se do juramento cívico imposto aos padres católicos, que, na prática, os passava a considerar funcionários do Estado francês, em vez de permanecerem dependentes de Roma e do Papa. O Rei exerceu o seu direito de veto (que a Constituição de 91, após longo debate na Assembleia que a elaborou, lhe concedera) sobre esse diploma, em 19 de Dezembro seguinte. A 11 de Junho do ano de 1792, dois novos vetos do Rei a outros tantos diplomas da Assembleia sobre os padres refractários. A 20 de Junho, a populaça invade as Tulherias, ameaça fisicamente o Rei, e exige-lhe a supressão dos vetos anteriores. Luís XVI não cedeu. A 10 de Agosto é destituído e guilhotinado a 21 de Janeiro de 93, após um vergonhoso «processo judicial», no qual não teve sequer direito a apresentar testemunhas de defesa. Em face destes episódios, Luís XVI, que a História quase unanimemente considera um rei frouxo, ficou conhecido por «Monsieur Veto». Michelet, um dos grandes historiadores da Revolução de França, considera o momento dos dois vetos do final do ano de 91 o ponto em que se consumou definitivamente o divórcio entre Luís XVI e o povo. Em face disso, o Rei perdeu o trono e, logo em seguida, a cabeça. Mas não perdeu a dignidade, com a qual, de resto, viveu muito bem os seus últimos momentos a caminho da guilhotina.

domingo, 23 de maio de 2010

a paixão pela educação

Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat
O modelo educativo português, que seguimos, pelo menos, desde a implantação da República, é seguramente o mais marcante vestígio ideológico da Revolução Francesa na nossa mentalidade social e política. Esse modelo é estatista, porque pretende que o estado monopolize a educação, ou através de uma rede pública de escolas, ou da imposição dos seus valores e das suas regras às escolas particulares, e vê a educação como um meio para a formação de cidadãos e não de indivíduos. Estas duas características são dominantes no nosso sistema de ensino – desde o infantil ao superior – e atravessam todo o século passado e aquele em que vivemos. Na verdade, quer na República, quer no Estado Novo, quer na III República, a Escola tem sido essencialmente um veículo de transmissão dos valores que o estado quer, em cada momento, transmitir à sociedade, formando cidadãos, isto é, pessoas que se identificam com esses valores públicos e com o estado que os promove (sucessivamente o republicanismo, o anticlericalismo, a laicização, o nacionalismo antidemocrático, o socialismo e a democracia social e estatista), em vez de formar indivíduos, transmitindo valores éticos e conhecimentos que os habilitem a pensar autonomamente. Por isso também, os três regimes nunca abdicaram do primado do ensino público, sobretudo na Universidade, onde se propricia a formação das consciências. A República, Salazar e Abril tiveram e tem este último uma aversão profunda à educação privada, isto é, toda a que se realiza fora do estado. Herdaram-na da Revolução Francesa, por cujos valores orientaram e orientam o seu sistema e as suas políticas educativas.

Muito antes de 1789, ainda na França absolutista, já o país debatia vigorosamente a educação, as funções que lhe cabiam cumprir, o modelo que deveria seguir, os métodos pedagógicos mais eficazes, a natureza laica ou eclesiástica das temáticas, e, socretudo, o papel histórico da Igreja na formação e administração das escolas e o futuro que deveria desempenhar nessa importante actividade social. Os philosophes anteriores à Revolução não foram estranhos a este debate. O espírito das «luzes» impele-os a afastarem-se de uma educação que, como escreve Georges Gusdorf (Le fin de l’éducation), cuide de «preparar os espíritos cultivados capazes de brilhar na boa sociedade», dando a sua preferência a um modelo educativo que se destine a formar «cidadãos úteis, suscetíveis de contribuir à empreitada coletiva da civilização», conclui. Desde logo, Rousseau, com o Émile, ou Da Educação, livro no qual fazia a defesa de uma pedagogia naturalista, distanciada dos vícios adquiridos pelo homem na vida em sociedade. Uma educação eminentemente moral que reforçasse a criança, para que ela pudesse enfrentar, no futuro, um mundo corrupto e desviante. Para Rousseau este naturalismo educativo e pedagógico tinha por finalidade essencial formar os futuros cidadãos capazes de exercer a soberania, que compreendessem e contribuissem para a formação da vontade geral. Por outras palavras, para o estado.

Mas outros pensadores contribuiram, antes da Revolução, para este debate, muitos deles com sugestões e animosidades bem menos especulativas do que a de Rousseau. Entre eles, La Chalotais (Louis-René de Caradeuc de La Chalotais: 1701 – 1785), autor do Ensaio sobre a Educação Nacional. Como todos os autores que pretendiam, nessa época, inovar, La Chalotais defendia a secularização da educação, retirando-a à Igreja e entregando-a ao Estado. Todavia, é devid a Condorcet (Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de Condorcet: 1743 – 1794) a teoria geral da educação que marcaria o espírito da Revolução e dos tempos vindouros, neles se incluindo os nossos.

Condorcet foi um dos derrareiros filósofos das «luzes». Segundo Michelet, terá mesmo sido «o último dos filósofos». Matemático, aristocrata com ideias liberais, amigo e companheiro de Turgot sobre quem escreveu uma biografia laudatória (Vie de M. Turgot), aderiu à Revolução sem ser um revolucionário, menos ainda um político. Acreditava firmemente na educação como força motriz das transformações sociais, e, eleito deputado ainda na Assembleia Nacional, submete-lhe um projecto de instrução pública e um outro de uma Constituição (este último elaborado com Thomas Paine). Ambos foram reprovados por influência de Robespierre. Em bom rigor, o projecto de instrução pública padeceu do veto à Constituição, que Robespierre considerava moderada e à qual haveria de contrapor a sua, aprovada em 93. Todavia, em quase nada ele desmerecia do espírito da época e da prórpia Revolução. Essa proposta fundava-se numa obra que Condorcet publicou em 1791, intitulada Cinq Mémoires sur l 'instruction publique, na qual defendia que a desigualdade da educação era uma das «principais fontes da tirania». Por essa razão, ele entendia que a instrução era uma obrigação social que o estado devia assumir. A educação pública, universal, laica e distanciada da Igreja era assim «un devoir de la société à l'égard des citoyens», como o autor defende ao longo da primeira das cinco partes das Cinq Mémoires, toda ela dedicada à instrução enquanto bem e serviço público. Morreria no cárcere de Bourg-Clamart (ao que se julga cometendo suicídio com um veneno que lhe foi facultado por Pierre-Jean George Cabanis, seu companheiro de presídio), para o qual fora remetido em Março de 94, após uma fuga de oito meses, sob a acusação de conspirar contra a República que lhe foi movida por François Chabot, em Julho de 93, um dantonista obtusamente adversário dos girondinos, que seria ironicamente guilhotinado com Danton sete dias depois.

Condorcet não assistiria ao triunfo inequívoco das suas ideias, não só em França, como na grande maioria dos países europeus, entre eles Portugal. Infelizmente, elas assistem ao espírito que orienta a educação de cariz estatista que é o nosso. A educação forma os cidadãos da República, imprime-lhes os seus valores, em vez de contribuir para a formação de indivíduos autónomos da ideologia do regime, isto é, de verdadeiros homens livres. As suas ideias eram, contudo, as da Revolução. A 13 de Agosto de 93, num discurso à Convenção, Danton proclamava-as: «O filho do povo será criado às custas do supérfulo dos homens de fortunas escandalosas», dizia. «Ao semear no vasto campo da República», continuou, «não deveis contar o preço da semente. Depois do pão, a educação é a primeira necessidade do povo! Meu filho não me pertence, ele é da República!» Uns meses antes, a 19 de Abril, afirmara perante a mesma assembleia: «A educação pública é uma dívida social que é preciso saldar desde que os vossos esforços lograram derrubar o despotismo e o reinado dos padres.» E Saint-Just, nas suas medíocres Instituições Republicanas, indo mais longe no estatismo, antecipava em boa medida os excessos do modelo comunista, ao defender a tutela das crianças pelo estado desde pequena idade, impondo-lhes uma educação «cívica», desde a transmissão das regras da moral republicana, até à imposição de hábitos alimentares (vegetarianismo!) e sexuais (virgindade feminina até à idade adulta). De todo em todo, é o mesmo espírito com variações de grau: a educação como bem público gerido pelo estado.

Esses princípios são inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada pela Convenção, ironicamente, em pleno Terror (a versão original, de 89, não os incluía, dada a sua natureza essencialmente burguesa e garantística dos direitos fundamentais de primeira geração, conforme a tradição constitucional da época, e não de direitos sociais). Diz expressamente o seu artigo 22º: «A instrução é uma necessidade de todos. A sociedade deve favorecer com todo o seu poder o progresso da inteligência pública e colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos.» Onde se lê «sociedade» deverá ler-se «estado», como por experiência própria infelizmente sabemos.

terça-feira, 18 de maio de 2010

jacobinos

Michel Vovelle, catedrático de História da Revolução Francesa na Sorbonne e Director do Instituto da História da Revolução Francesa, publicou, em 1999, um livro interessante sobre o seu tema de eleição intitulado «Les jacobins: de Robespierre à Chevènement». Verdadeiramente, o livro não começa em Robespierre e é aí que ganha verdadeiro interesse. Para quem julga que o jacobinismo começa e termina com o Incorruptível e quiser prescindir de obras de maior fôlego, este livro é um auxiliar necessário.

Não sendo uma análise original (Michelet já a fizera antes), a perspectiva de Vovelle sobre o jacobinismo divide-o, pelo menos, em três fases a ter em conta: a) o jacobinismo primitivo; b) o jacobinismo misto; c) o jacobinismo de 1793.

A primeira fase é a da fundação do clube no Convento de São Tiago (Saint-Jacques), na velha Rua de Saint-Honoré, e nele predominava um grupo de raíz parlamentar e de elevada posição social (alguma nobreza, alta burguesia), onde se incluiam Duport, Barnave e Lameth, mas também Condorcet, Cazotte, Aiguillon, e mesmo até Mirebeau e La Fayette. Ao Clube pertenciam já Robespierre e Brissot, os futuros líderes jacobino e girondino, cujo confronto levaria à queda do segundo e à ascensão do primeiro à chefia do Comité de Salvação Pública, embora as suas presenças não fossem ainda dominantes. Esta fase estende-se até ao fim de 90, e é marcada pela defesa da monarquia constitucional, do voto censitário e de um entendimento da Revolução como um processo de reforma do regime e não da sua radical destruição. Nesse sentido, o directório do Clube publicou uma circular em Janeiro de 91, onde se podia ler: «A revolução está terminada, o império das leis está consagrado, somente a sua execução tranquila pode consolidar a Constituição.» Como todos sabemos, não foi isso que veio a suceder.

Em Junho de 91, com a fuga de Luís XVI para Varennes, consagrou-se a cisão entre os dois grupos do Clube, os «moderados» e os «democratas». A 16 de Julho, Antoine Barnave constituiu uma nova Sociedade dos Amigos da Constituição, para a qual levou a maior parte dos jacobinos institucionais, nomeadamente os deputados da Assembleia Nacional. Esse novo Clube ficou conhecido pelos «feuillants», devido também ao local onde decorriam as reuniões, o Convento dos Feuillants de Paris, na mesma Rua de Saint-Honoré onde reuniam os Jacobinos, agora com a presença ascendente de radicais como Robespierre, Pétion, Brissot e Buzot. Deste grupo, que não era homogéneo, que aceitava discutir a eventual substituição do Rei, mas não era uniforme na defesa da República nem o fim da Monarquia, surgiriam os Girondinos e os Jacobinos da terceira vaga, isto é, do Ano II.

Durante a segunda fase do jacobinismo, que vai da cisão de Julho de 91 a Agosto de 92, sobreleva a separação progressiva entre o Clube e o Parlamento, arrastando o primeiro para uma sociedade popular, assente no predomínio «sans-culotte». A segunda cisão que o Clube haveria de conhecer, que provoca a exclusão da Gironda, segue esse meridiano: os girondinos defendem a ordem parlamentar estabelecida, os jacobinos stricto sensu advogam a revolução popular e radical. Se em 29 de Julho de 92 Robespierre acentuava as diferenças pedindo, em discurso no Clube, a destituição do Rei e a eleição de uma Convenção por sufrágio universal e não já pelo tradicional sufrágio censitário, o golpe revolucionário de 10 de Agosto seguinte, levando à queda de Luís XVI, consumou a inevitável separação. A partir desse momento, a cena pertence, por inteiro, a Maximilien Robespierre.

A consumá-la o Clube mudaria de nome para Sociedade dos Jacobinos Amigos da Liberdade e da Igualdade. A Constituição era posta à margem, o que, de resto, o Clube se encarregaria de fazer com a sua substituição por um documento revolucionário, em 93, que nunca chegaria a vigorar na ordem jurídica. Os jacobinos abandonam definitivamente a legalidade, ainda que revolucionária, e entregam-se decididamente ao poder popular. O domínio pertence agora a Couthon, Saint-Just, Dumas, Billaud-Varennes, Coullot d’Herbois, mas, sobretudo, a Robespierre, que tem no Clube o seu refúgio, ao qual recorre quando se sente inseguro na Convenção ou mesmo no Comité.

Foi exactamente o que ele fez na noite de 8 Thermidor, no último discurso público que proferiu perante uma assembleia. Consciente do perigo em que se encontrava, embora ainda embevecido com a sua oratória que julgava capaz de inverter todas as dificuldades, dirigiu-se aos jacobinos, dramatizando os reveses da manhã na Convenção, e dizendo-lhes no fim de um longo discurso: «Eis meu testamento. Meus inimigos, ou antes, os da República, são tão numerosos e tão poderosos que não poderei escapar por muito tempo aos seus golpes.» Estava, involuntariamente, certo: no dia seguinte a Convenção já o não quis esctutar. O derradeiro golpe viria dois dias depois, executado pela experiente mão de Samson.